sexta-feira, 28 de agosto de 2009

J. Saramago

José Saramago, romancista, dramaturgo e poeta português. Nasceu em 1922.

"Os romances recentes de J. Saramago retratam uma época de trasnformações que para boa parte da humanidade resulta em mais perdas que ganhos. Em "Ensaio sobre a cegueira", os personagens perdem a vista sinal de um tempo em que todos parecem estar cegos.Em "A Caverna" os oleiros artesãos perdem o emprego incapazes de sobreviver a sociedade de consumo. Em "O homem duplicado" dá-se a perda de identidade, mote ficcional para que o autor toque num dos aspectos mais desumanos da sociedade global, que, em sua ânsia uniformizadora, dissolve as singularidades numa cultura pretensamente universal."


O Homem Duplicado - José Saramago - São Paulo-SP. Companhia das Letras, 2002.

"O caos é a ordem por decifrar" - Livro dos Contrários

"Quem Porfia Mata Caça. São imaginações minhas, as vezes acontecem sairem os sonhos de cérebro que os sonhava, então chamamo-lhes visões, fantasmagorias, premonições, advertências, avisos do além, quem respira e anda aí pela casa, quem há pouco se sentou no sofá, quem está escondido atrás da cortina da janela, não é aquele homem, é a fantasia que tenho dentro da cabeça, esta figura que avança direta em mim, que toca com mãos iguais a deste outro homem adormecido ao meu lado, que me olha com os mesmos olhos, que com os mesmos lábios me beijaria, que com a mesma voz me diria as palavras de todos os dias, e as outras, as próximas, as intimas, as do espírito, e as da carne, é uma fantasia, nada mais que uma louca fantasia, um pesadelo nocturno nascido do medo e da angústia, amanhã todas as coisas tornarão ao seu lugar, não será preciso que cante o despertador, toda gente sabe que nenhum homem pode ser exactamente igual a outro num mundo em que se fabrica máquinas para acordar. A conclusão era abusiva, ofendia o bom senso. Senhora dos seus pensamentos e do seu querer, as alucinações da noite, sejam as da carne, sejam as do espírito, sempre se dissiparam no ar com as primeiras claridades da manhã, essa que reordenam o mundo e o recolocam na sua orbita de sempre. Quanto mais tentemos repelir as nossa imaginações mais elas se divertirão a procurar e atacar as portas da armadura que consciente ou inconscientemente tivemos deixado desguarnecidas. Os actores precisam de dormir muito, será uma conseqüência da vida irregular que levam, mesmo saindo tão pouco a noite. O ultimo gole de café quando outra idéia lhe cruzou as sinapses. Repete-se com tão assombrosa regularidade que cremos ser lícito. A saber que aquilo que os separava era apenas uma porta não um muro. Pensava que o pior de todos os muros é uma porta de qe se nunca teve a chave. Como ensinavam os antigos nunca diga desta água não beberei, sobretudo, acrescentemos nós, se não tiveres outra. O próprio dele inclinar-se mais para o lado da melancolia, do ensimesmamento, de uma exagera consciência da transitoriedade da vida de uma incurável perplexidade perante os autênticos labirintos cretenses que são as relações humanas. A suprema experiência do vegetal, memórias de um carvalho escritas pelo próprio. Deixe os arbóreos em sossego que eles já lhe sobram as pragas fitopatológicas, a serra elétrica e os fogos florestais. Nos seres humanos são o equivalente daqueles rápidos toques de reconhecimento que as formigas fazem umas as outras com as antenas quando se topam no carreiro. Por favor não me venhas pra cá com histórias preparadas. O futuro é um imenso vazio. Depende da minha existência, se eu neste momento morresse, uma parte do futuro ou dos futuros possíveis ficaria pra sempre cancelado. Prefere beber uísque ou conhaque? Usava no dedo anelar esquerdo. O meu duplicado. Nasci nesta mesma data, dia, mês e ano. Eu nasci meia hora antes. O duplicado é você. Tendo nascido no mesmo dia, também no mesmo dia iremos morrer? Por trás das montanhas cercavam o horizonte do outro lado do rio. Uma mulher que for capaz de vencer suas femininas fraquezas é um homem. Força de inércia. Eu estou a falar do xadrez. Só um senso comum com imaginação de poeta poderia ser o inventor da roda. Mão à palmatória. Também inventei a ferradura. És um incrédulo sistemático. Papéis de dez linhas despertam com desanimadora freqüência a inveja dos papéis de cinco. Toma um tranqüilizante. Guardar uma barba que foi usada. A pessoa é outra, a cara é a mesma. Não lhe saltaram as chamas, mas inesperadamente as lágrimas. Na boca do lobo como um pardal desprecavido. Apagou a luz da mesa da cabeceira. As civilizações mesopotâmicas. Tormactus. Farejam e coçam as pulgas, mordem de vez em quando. Salvo se tiver que sair para ladrar ao pátio e de caminho beber água na tigela e alçar a perna no canteiro de gerânios ou na moita de alecrim. Olha o relógio. Desorbitada esperança logo feita em cisco pela lógica dos factos. Ao marasmo da indecisão. Seja lícito presumir, chamou por intercomunicador. Actores secundários. Espécie de coadores da voz. Os duches que tomamos por foram não nos possam assear por dentro. Levar a cabo a mistificação epistolar. Três vezes não. Como uma bofetada, a barba postiça. Todas as razões do destino são humanas. Pessoas felizes que nunca se viram diante de uma cópia de si mesmas. Ardilosamente a por as piores ações em harmonia com as melhores razões. Terá de ganhar ou de perder. Sua cama era seu castelo, também poderia ter dito que a cozinha é seu baluarte. Há uma parte de ti que dorme desde que nasceste. Vocação para Cassandra. Içar a bandeira branca das rendições incondicionais. Atribuiu-lhe os braços como uma outra mãe. Resultante literária do majestoso equilíbrio cósmico. O universo anda embora desde suas origens um sistema falto de qualquer tipo de inteligência organizativa, dispôs em todo caso de tempo mais que suficiente para ir aprendendo com a infinita multiplicação das suas próprias experiências de modo a culminar como vem demonstrando o incessante espetáculo da vida, em uma infalível maquinaria de compensações, que só necessitará também ela de um pouco mais de tempo para mostrar que qualquer pequeno atraso no funcionamento das suas engrenagens não tem a mínima importância para o essencial, tanto faz que haja que esperar um minuto, ou uma hora, como um ano ou um século. Transportados para os intestinos eletrônicos do gravador de chamadas. Uma benção retardada tivesse que finalmente descido do chuveiro, como em outro banho lustral. Oxalá ela ainda lá esteja quando tu acordares. Não sou capaz de recordar exatamente. Ainda não eram onze horas. Venho pedir um copo de água. Cabalmente se demonstra pelo fato de não fazermos mais nada que multiplicá-las ao longo de todo o santíssimo dia. Os gregos vão incendiar Tróia. A dar voltas para não ouvir. Assassinos e assassinados. Em minha casa de campo. Remexeu-se no sofá, exasperando consigo. Acabara de cruzar-lhe de lado a lado o cérebro. Documentos de identificação. Cortinas velhas caídas no chão. Este mês é agosto. O elevador parou no quinto andar. Não há lugar para mim. Como um castelo de cartas que o bafo de uma criança tomba. Perturbadoras. Parecia dormir profundamente. Dureza novamente insatisfeita. Conhecia palmo a palmo. Abismo. Exausta energia paradoxal da alma humana. A possibilidade de emergência de uma desusada nobreza, de um cabalheirismo tanto mais digno de aplausos. Cobardia moral. Absolutamente de sair. Tem na ponta da língua. Brilho anunciador de choro. Marcou o número. Morreu esta manh. Já não recorda nem recordará. Soluços lhe sacudiram o peito. Neste momento ama. Gostos e preços. Olho por olho. A lei do talião. Xeque-mate. Leva o jornal dobrado debaixo do braço. Esfregou entre o indicador e o polegar da mão direita o anelar da mão esquerda. Boas tardes. Pistola no cinto e saiu."


As partes retiradas do livro.
As partes retiradas, juntas.


Luana
(Curti o livro. Ainda restam peguntas.)

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